Bia
não tinha jeito. Vivia caindo nas pegadinhas de primeiro de abril que o pessoal
do escritório fazia e, por isso, a cada ano a turma se esmerava mais. Depois da
revelação da mentirinha, ela jurava que no ano seguinte seria mais cética,
menos iludida, mais esperta, menos esquecida. Mas não tinha jeito: lá vinha
outro primeiro de abril, e mesmo com a recorrência da data, ela se comovia com
a “morte do cachorro” de um, com o “pedido de casamento” de outro, com a “viagem inesperada” de mais outro.
A
frase que Bia mais dizia era: “Putz, não
sei como caí nessa de novo!”, mas ainda assim, não perdia aquele sorriso
acolhedor e olhar afetuoso de quem é leve, de quem perdoa, de quem não carrega
dívidas nem mágoas na bagagem.
O
problema é que a tolerância de Bia não se restringia ao bom humor com que
levava as brincadeiras da firma. Bia achava que tudo “eram coisas da vida”, e apesar de sofrer muito com as idas e
vindas do amor, acabava relevando tudo, perdoando tudo, e, como era de se
esperar, caindo nas mesmas velhas armadilhas de sempre.
Bia
tinha amor próprio sim. Tinha autoestima e tudo isso que as pessoas dizem que é
bom ter. Se olhava no espelho e gostava do que via, desejava o melhor para si
mesma e acreditava que carregar mágoas envelhecia a pele e murchava o espírito.
Por isso preferia esquecer. Esquecer o que lhe fazia mal, esquecer o que a
magoava, esquecer o que a enganava. O que faltava para Bia era certa malícia.
Era compreender que o mundo é um lugar mais hostil do que ela supunha, e que só
porque ela tinha olhos bons, não queria dizer que todos tivessem também.
Faltava à Bia a compreensão de que precisava se proteger, se resguardar, até
mesmo se blindar. Ao contrário da maioria das pessoas, Bia precisava aprender a
valorizar mais os tombos, as dores, as feridas e desejar que isso nunca mais se
repetisse. Bia precisava começar a colocar limites para aquilo que feria, que
iludia, que destruía, e não achar isso tão simples, comum, banal, “coisas da vida”. Ela precisava parar de
perdoar o que a machucava, e começar a ter uma memória mais aguçada para as
coisas que lhe causavam dor.
A
sorte de Bia é que ela tinha Joana. Joana era uma grande amiga, dessas que
conhecem a gente mais do que a gente mesmo, e sabem o quanto precisamos de um
segundo olhar para nossas histórias, um olhar que nos compreenda e ao mesmo
tempo nos confronte, um olhar que nos acolha e ao mesmo tempo nos impulsione a
mudar. Joana gostava de Bia sem tirar nem pôr, mas desejava que a amiga tivesse
mais sorte no amor.
Bia
amava Beto. Bia achava que podia endireitar Beto. Bia acreditava que Beto a
amava como ela o amava. Bia achava que Beto era apenas indeciso. Bia estava
disposta a esperar que Beto amadurecesse. Bia tinha paciência com Beto. Bia
apostava tudo no relacionamento com Beto, mesmo sabendo que Beto não estava nem
aí. Bia acreditava que Beto a amava como ela o amava (eu sei, já disse isso).
Bia relevava as inconstâncias de Beto. Bia perdoava as dúvidas de Beto. Bia
achava o amor deles lindo. Bia acreditava que relacionamentos são difíceis
mesmo. Bia realmente achava que Beto a amava como ela o amava.
Joana
via tudo. Via Beto sumir, via Bia compreender. Via Beto dizer “o problema sou eu”, via Bia acreditar
que “era boa demais pra ele”. Via
Beto jogar tudo para o alto, via Bia juntar os caquinhos. Via Beto gritar, via
Bia chorar. Via Beto bater à porta, via Bia recebe-lo de braços abertos. Via
Beto bloquear, via Bia suspirar. Via Beto desbloquear, via Bia dizer que isso
era amor verdadeiro. Via Beto não saber o que queria, via Bia justificar sua
covardia. Via Beto partir, via Bia morrer um pouquinho. Via Beto voltar, via
Bia animar. Via Beto enganar, via Bia acreditar.
Joana
detestava Beto. Para ela, ele não passava de um covarde mimado que não tinha a
mínima consideração por Bia. Talvez um dia, se Bia o deixasse, ele caísse na
real e lamentasse o que perdeu. Mas enquanto a doce Bia estivesse a postos para
o que desse e viesse, ele não perceberia. O que Joana mais queria era que Bia
acordasse. Que Bia aprendesse de uma vez por todas que Beto não fazia bem a
ela. Que descobrisse que relacionamento desgastado não é relacionamento bom.
Que quem põe o relacionamento à prova não se importa em perde-lo. Que quem
precisa do seu perdão inúmeras vezes não se importa em te magoar. Que quem te
machuca repetidas vezes nunca irá te fazer bem. Que quem vai e volta, faz isso
porque sabe que sua memória é fraca e seu coração é mole. Que esse jogo de
morde e assopra parece sedutor, mas não passa de C-I-L-A-D-A.
Então,
numa das idas e vindas de Beto, com direito à bloqueio no zap e redes sociais,
Joana chamou Bia pra uma conversa e lhe entregou um documento intitulado “Dossiê do Fim”. Bia aceitou com
docilidade, como de praxe, e entre lágrimas e goles de vinho tinto, leu e releu
aquelas páginas assimilando cada uma daquelas palavras da amiga, irmã,
confidente, conselheira. Quando Beto decidiu voltar, desbloqueando Bia e
reaparecendo com o velho sorrisinho bobo, Bia silenciou. Silenciou mesmo quando
ele disse que tinha viajado e pensado nela; silenciou mesmo quando ele mandou
fotos com os olhos “vermelhos de tanto
chorar”; silenciou após as flores chegarem no trabalho dela acompanhadas de
um cartão com versos de Vinícius; silenciou mesmo quando ele apareceu na porta
do prédio dela e ameaçou fazer um escândalo. Bia silenciou não para puní-lo ou
para motivar uma mudança, mas porque ela tinha mudado. Ainda gostava dele, era
evidente, mas tinha escolhido a si mesma.
Uma
semana depois de silenciar, ao se recolher, Bia releu o “Dossiê do Fim” como fazia diariamente, várias vezes ao dia.
Aquelas palavras escritas tinham o poder de lhe dar forças, e assim seria por
muito tempo, até o dia em que, sozinha, conseguiria se colocar em primeiro
lugar. De novo abriu aquelas páginas e leu:
“Sabe Bia, a vida dói. Dói pra
todo mundo, de um jeito ou de outro. Mas acho que o caminho que você está escolhendo,
vai doer ainda mais. Mas sabe, ainda dá tempo, você ainda tem escolha, você
ainda pode mudar o rumo da história.
Então vão aqui algumas
considerações:
– Se ame o bastante para fechar a
porta.
– Não se deixe levar por ‘impulsos
incontroláveis’ que justifiquem suas recaídas. Não desbloqueie, não procure,
não investigue, não espie. Você constrói suas próprias armadilhas.
– Não caia nessa de novo. Ele vai
insistir, insistir, mandar zap, telefonar, insistir mais um pouco. Mas depois
que ele conseguir, vai se acovardar, sumir, desistir. É assim que ele
sobrevive. Mas não precisa ser assim para você.
– A vida dói mesmo. Não caia
nessa de querer aliviar um pouquinho, só batendo um papinho, só por uns
minutinhos. Acredite em mim: vai doer mais.
– Você vai amar e sonhar sozinha
de novo?
– Muitas vezes a dor da perda não
vale a alegria do reencontro.
– Tentar esquecer alguém dói. Mas
se a gente quiser realmente, a gente consegue.
– Não tente justificar os erros
dele nem diminuir a dor que ele provocou em você. No fundo você sabe de tudo, a
gente sempre sabe.
– Perdoe, mas não supere a ponto
de deixar acontecer de novo.
– Não romantize a perda, as dores,
os vacilos, o desrespeito.
– Esteja disposta a desistir
daquilo que te diminui, entristece, maltrata.
– Não se dê ao trabalho de
reagir. Nem toda situação merece uma reação, e de vez em quando o silêncio é a
melhor resposta.
– Não tenha medo do amor. Tenha,
antes, prudência diante de pessoas que deturpam o real significado do amor.
– Assuma um compromisso com você.
Fique firme, forte, lúcida. Ser uma pessoa boa não é ser tonta. Feche a porta,
dê um basta, não permita joguinhos.
– Não aceite conversinhas do
tipo: “Você é boa demais pra mim”; “Você merece algo melhor do que eu”; “o
problema não é você, sou eu”. Além de clichê, batido e ultrapassado, é feio,
cruel, covarde e falso.
– Algumas pessoas não nos querem
em suas vidas, mas desejam ardentemente nunca serem esquecidas. Para nutrirem
seus superegos, esses supervaidosos brincam com outros corações, despertando o
amor sem intenção de ficar. Fuja deles, bata a porta na cara deles, se proteja
e se blinde contra eles. Nenhum coração merece ser partido para alimentar o
narcisismo e a presunção de alguém.
– E enfim responda: Quantas vezes
mais você vai permitir que ele quebre seu coração?”
Bia
entendeu. Era boa, mas não era burra. Era esquecida, paciente e ingênua, mas
não era otária. Tinha o coração bom, cheio de perdão, mas não tinha sangue de
barata. Fechou os olhos e respondeu à última pergunta em voz alta: “Nunca mais. Nunca mais. N-U-N-C-A
M-A-I-S...”
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