O
amor cantou aos meus ouvidos que ele não se curva às circunstâncias, que ele é
onde tem que ser, do jeito que dá. Que ele não se alimenta de desculpas ou do
que é efêmero. O amor me disse que ele não se apaga com água. O amor me disse
que na chuva ele floresce.
Quando
a água do mundo resolve lavar os céus, quase sempre, corremos para todos os
lados, protegendo os cabelos, as roupas e os sapatos.
É
que a água pode atrapalhar alguns planos, pode nos desarrumar para a reunião do
dia, pode bagunçar os preparativos para o almoço ou avivar a percepção gelada
de uma brisa fresca em nosso corpo.
Mas
existem os que não se importam com a chuva, existem aqueles que vivenciam,
delicados, a chuva de outra forma. E não digo daqueles que o fazem pelo calor
da tarde de um dia de verão, tampouco das crianças embaladas pela alegria da
infância, falo dos que estão protegidos pela aura luminosa do amor.
Beijos
e abraços na chuva levam, em filmes, as convenções sociais para o ralo. Vocês
já devem ter assistido a uma dúzia deles nos quais os mocinhos se engalfinham
molhados no ápice do romance, mas não só em filmes isso acontece, na vida
também.
Foi
o que concluí ao passar correndo, e afoita, por um casal, que em uma longa
calçada de uma rua industrial, se abraçava demorado, embaixo de muita água.
Ele
usava óculos e tinha uma mochila nas costas, ela vestia jeans e uma camiseta
azul discreta e os dois inevitavelmente vertiam amor por todos os poros. Mas o
amor deles não era aquele de carícias, de línguas e passadas de mão. Era um
amor desprovido da ânsia da carne, era um amor de dois que se encontram ou se
despedem depois de muito tempo separados.
Notei
que, a despeito da chuva que caía, os braços permaneciam rijos e apertados, e
que eles, discretos, de olhos fechados, explanavam ao mundo que não era preciso
verbalizar nada. Eles se entendiam no silêncio do querer bem. E para mim,
naquele instante, ficou claro que os dois só queriam um filete a mais de tempo
para ficarem juntos. Que eles só queriam dispor de um pouco mais de tempo para
se sentirem e se amarem. Para eles não importava o aspecto desse tempo. Fosse
ele seco ou molhado, seria nele que caberia, apertado, o abraço da vida.
E
ali, naquele canto ermo da cidade, eles pareciam estáticos. O mundo girava, as
gotas caíam grossas, tudo no entorno se transformava, mas não eles, eles
pareciam tocados por um delicioso torpor.
O
amor daqueles dois era mais forte que tudo que os cercava, o amor que os
embalava tinha o poder mágico de transportá-los para outros lugares, para
outros gostos, cheiros, lembranças e impressões. O amor que os habitava era
capaz de livrá-los de sensações que não fossem aquelas engendradas pelo
reencontro ou pela despedida.
Aquele
amor emudecia o mundo e tapava os olhos deles para os que passavam, dizendo
carinhoso que nada mais importava. Aquele amor era capaz de transcender, de
encharcar o corpo de calores e deixar a alma marcada para sempre.
Percebi
que o amor em sua gentileza guardava-os de qualquer zanga pelo mau tempo ou
pelo vento que acompanhava aquela chuva.
Talvez
no mundo o amor tivesse que ser assim. Talvez o amor tivesse que brotar
apertado em meio às convenções. Talvez o amor tivesse que se contentar com um
tempo espremido.
Mas
o amor em sua grandeza não se importa com o lugar, com o momento, com a chuva
ou com o vento. Ele simplesmente é, e o é com uma força arrebatadora.
O
amor naquele dia encheu de vida a rua cinza de fábricas alongadas e tristonhas.
O amor naquele dia disse a quem o quisesse ouvir que ele é maior que tudo. Que
ele é mais forte que o tempo, que o vazio e a chuva juntos.
O
amor cantou aos meus ouvidos que ele não se curva às circunstâncias, que ele é
onde tem que ser, do jeito que dá. Que ele não se alimenta de desculpas ou do
que é efêmero.
O
amor me disse ali que ele não se apaga com água. O amor me disse ali que na
chuva ele floresce.
Via: Obvious