Algumas
vezes nos tornamos novamente meninos diante das travessuras da vida.
Crescemos,
constituímos família, amamos, acreditamos, nos decepcionamos, perdoamos,
desistimos e recomeçamos, mas algo dentro de nós permanece atado à mesa onde
comíamos junto com nossos pais e à terra onde semeamos nossos primeiros afetos.
Trazemos
conosco vestígios daquela configuração inicial, época em que supúnhamos que o
mundo cabia dentro de nossa casa, e que a vida fazia sentido nas explicações
dadas sob a luz do abajur antes de dormir. Tempo de possibilidades infinitas e
deslumbramentos diante das certezas de nossos velhos.
A
memória é uma presença viva, e hoje tentamos recriar momentos que apaziguem a
solidão e tragam de volta o grito da mãe chamando para o jantar e a alegria
silenciosa de perceber que pouco a pouco atingíamos a estatura do pai.
De
todas as lembranças que a casa de meus pais me trouxe, talvez a maior delas
seja o dia em que, pela primeira vez, vi meu pai chorar. Quem viveu isso na
infância sabe que nesse encontro de lágrimas e assombro está o que valida e
justifica nossa humanidade, a descoberta de que apesar da distância
proporcionada pelo respeito, hierarquia e subordinação, somos todos meninos
sensibilizados pela vida e seus mistérios. Quando um pai chora diante de um
filho, duas eternidades se encontram e se misturam, e naquele instante de
preciosa intimidade, os papéis se invertem e se complementam.
De
meu pai herdei a cor da pele e a timidez introspectiva. Talvez também esteja
repetindo o gosto pela música, leitura e fotografia - amuletos que estimulam
nossa sensibilidade e permitem que aflore nossa emoção contida. Esse é meu
jeito de amar meu pai e me sentir amada por ele. Tenho descoberto que o afeto
tem caminhos tortuosos, e engloba palavras não ditas e gestos não declarados.
Sinto
afeição por um tempo que se extinguiu materialmente, mas resiste na memória
afetiva. Como nos versos do escritor português José Luís Peixoto: “na hora de pôr a mesa, éramos cinco”.
Lá em casa éramos meu pai, minha mãe, eu e meus dois irmãos. Não sei se tivemos
chance de perceber que vivíamos momentos preciosos, que seriam revisitados anos
mais tarde com saudosismo e ternura, nos lembrando que ainda que as escolhas
tenham nos dividido e separado, ainda que os sonhos tenham se dissipado e o
tempo tenha tornado tudo vago e nebuloso, ainda assim, em algum lugar na
memória, ainda somos os cinco. Os cinco que um dia se sentaram à mesma mesa e
dividiram o mesmo pão. E até mesmo as advertências rotineiras: “coma soja!”, “não coloque sal na salada!”, “senta
direito!”... ajudaram a construir a noção de que houve um tempo em que
fomos realmente felizes.
Hoje,
chegando o dia dos pais, lhe ofereço essas lembranças de presente. Talvez elas
lhe tragam acalento para a alma e paz para o coração.
Meus
irmãos agora são pais. Luiz, meu marido, é o pai de Bernardo, meu filho. Em
volta de cada mesa, uma história se constrói e será o alicerce das vivências
futuras de meu filho e meus sobrinhos.
Desejo
que esses pais consigam avaliar a dimensão da sorte que têm. Que consigam
identificar os momentos preciosos que vivem e não desperdicem esses instantes
com pressa, distrações ou discussões inúteis. Que reconheçam a eternidade nas
queixas do menino que não quer raspar o prato e na aflição da menina que
derruba feijão na toalha. Que tenham lucidez para não substituir as boas conversas
em torno da mesa pelas notícias da tevê ou mensagens do WhatsApp. Que deem-se
as mãos e orem juntos antes de cada refeição, agradecendo ao alimento que será
servido e ao momento que será revisitado muitas vezes no futuro, em noites de
solidão e saudades. Que não se atrasem para a infância dos filhos, para o
momento fugaz em que eles ainda precisam de nós, para o instante raro em que
ainda podemos ser amparo e refúgio em suas vidas. Que construam boas lembranças
para seus meninos, para que, quando chegar a vez deles, também saibam ficar
atentos à felicidade e repitam o gesto construindo memórias ao redor da mesa.
Que não se ausentem da vida de seus filhos, descobrindo, tarde demais, que a
mesa ficou vazia e não restaram vínculos nem promessas, porque não foram
plantados nem cultivados. Mas que, ao contrário, haja sensibilidade para
priorizar esses encontros e sabedoria para viver esse interlúdio com doçura e
devoção...