A
rejeição é dor inevitável. É inspiração para os poetas. Latejante, dilacerante;
a dor de não ser aceito nos faz vivenciar o mais intenso desconforto por amar e
por existir. Rejeitar e ser rejeitado são faces de uma mesma moeda. Efeito
colateral do amor, eis a vivência que nos leva a pensar: sofro, logo existo!
Quando
Chico Buarque de Holanda escreveu a letra de ‘Atrás da Porta’ ele ilustrou de
forma única a perfeita dor do ser humano ao ser rejeitado. Estar “sem carinho, sem coberta, no tapete atrás
da porta”, deixado ali por um “olhar
de adeus” parece ser muito pior do que acordar sendo uma barata.
Kafka
pode ter sido mais abrangente ao sintetizar num único livro todas as dores
oriundas da existência humana, já Chico escreveu música para tudo, uma ou mais
para cada particularidade humana. A rejeição é uma dor inevitável, que será
sentida por todos nós, “em campo aberto
ou numa emboscada” (plagiando Oscar Wilde, outro mestre na descrição de
dores). Artistas se inspiram muito na rejeição, todos eles talvez a tenham
vivido intensamente. Acredito que há dois tipos de gente já dilacerada por ter
sido rejeitada: artistas e indivíduos com baixa autoestima e pouco amor
próprio. E assim, ninguém escapa. Se ao ouvir que o cabelo está feio o dia fica
mais feio ainda, que dirá ouvir que não se foi aceito para se ser amado.
Há
quem diga que sentir-se rejeitado é apenas fruto da nossa imaginação. Há quem
diga que sofrer por isso é fruto da nossa falta de vergonha na cara. Há quem
diga que tudo isso é apenas a angústia de separação da mãe. Há teorias infinitas
e nenhum caminho nem remédio para evitar o ímpeto de querer quem não nos quer,
de sofrer quando isso acontece e de agredir para ver se essa dor passa. É como
descreveu lindamente Adriana Calcanhoto na mais popular das suas canções
chamada Mentiras. E depois de quebrar xícaras e arranhar discos sobra enfrentar
a dor e, no caso dos artistas, fazer música e letra, verso e prosa da coisa
toda. Queria saber quem inventou esse surto coletivo de querer (e ter que) ser
aceito e amado e idolatrado e escolhido o tempo todo. Queria saber por que
Carlos Drummond de Andrade escreveu aquela quadrilha que termina com alguém que
desistiu e com do fim trágico de Joaquim. A Quadrilha acabou se tornando,
também, o mais famoso poema dele, porque rejeição faz sucesso e é assunto vivo
nos divãs, salões de beleza e balcões de bares.
Sempre
me pergunto se rejeição existe mesmo como uma energia viva que vem de fato como
uma flecha envenenada, atirada pelo outro em nossa direção. Ainda tenho dúvidas
se tudo não passa de um grande erro de observação. A raça humana não é muito
apta e nem muito confiável para observar. Parece que não enxergamos quase nada
que não a nós mesmos e a projeção de nossos sentimentos. Se eu estiver certa:
ser rejeitado nada mais é do que rejeitar-se - o que não significaria facilitar
em nada as coisas, nem serviria de emplastro para tratar a dor.
Noves
fora toda essa ferida ensanguentada, a situação é simples e bem comum: é só a
constatação do desinteresse de uma das partes pela outra, gerando assim a
rescisão do contrato chamado relação – isso no caso de ela ter um dia existido,
caso contrário é só o “não há interesse”
mesmo. Estou sendo reducionista ao chamar relações de contrato, a metáfora é só
para refletir que não gostar de um apartamento que se visita para alugar não
significa que este é imprestável – ele apenas não se encaixa no que se precisa,
talvez ele seja bom demais. Ser rejeitado não tem nada a ver com ser ruim, e
pensando assim, não dói tanto. Se alguém ousou rejeitar Chico Buarque de
Holanda, cada um que cate sua poesia entornada no chão. Depois disso é seguir.
É partir - isso se não fôssemos nós essa espécie propensa a amar, a desejar, a
sofrer por não ser aceita e a insistir no cultivo de certas dores. Qualquer
rejeição nos paralisa, nos desaba, nos joga na sarjeta; e lá ficamos, lambendo
a tal ferida.
O
nível de sofrimento pela rejeição está intimamente ligado ao grau de
dependência que temos do outro e de suas percepções sobre nós. Gente livre é
coisa rara, e cara - mas deve valer o investimento, porque a liberdade encanta
e ser livre talvez seja não ter tempo para lamber feridas que, cicatrizarão
sozinhas com o tempo. Sobre as regras práticas de convívio entre a nossa
espécie cuja eficácia já foi comprovada, uma delas é: o direito mora ao lado da
tolerância. É direito do outro não nos querer, é nosso dever ser tolerantes,
aceitar e seguir. Sigamos então fazendo música, poema, mudando as roupas,
comendo chocolate, bebendo no balcão e adorando pelo avesso essa existência
chamada de vida, da qual somos reféns até que se prove o contrário.
Via: Obvious