Para
ser feliz um homem precisa, antes de mais nada, viver o seu tempo.
Um
homem que não vive o seu tempo não pode ser feliz.
Não
adianta espanar o pó das relíquias de família três vezes por dia. É inútil
estudar datilografia. Todos temos memória, e uma história, mas a história só
serve de algo quando das raízes nos projetamos para o alto. Ou a história nos
situa no agora ou nos afunda na nostalgia. Um homem precisa viver o seu tempo.
Um
homem, uma mulher, precisam viver o seu tempo. Acordar de manhã e saber das
notícias – não as notícias do mundo inteiro, se não o quiser, mas as notícias
que lhe afetam. Um homem que pretende ser feliz precisa saber se o elevador
funciona naquele dia, se a companhia de luz preveniu sobre o corte no
fornecimento, se Maria passa bem, se Joana deu à luz sua sobrinha.
Um
homem que vive o seu tempo se confronta com outros homens que vivem o seu tempo
– logo, precisa saber dialogar. Sem diálogo não é possível ser feliz, sem um
contato razoável, mas não exagerado, sem a descoberta do outro que provoca a
descoberta de si e do mundo, nunca irá se achar.
Não
é possível bem viver sem saber o que os colegas pensam da vida, como vivem a
vida, qual sua narrativa. Não para imitá-los, perda de tempo, mas para
aliviar-se diante da realidade impassível.
Para
ser feliz um homem precisa, antes de mais nada, viver o seu tempo. Depois,
confrontar-se e aceitar a crueza das coisas como são. Saber que hoje chove e
encarar a chuva, saber que as pessoas morrem e encarar o luto, saber que o
limite do cartão estourou duas vezes. Mas saber, sobretudo, que a chuva, o luto
e a pobreza passam. E que é no meio da chuva, do luto e da pobreza que deve
construir a sua casa, depois decorá-la, depois povoá-la, depois pacificá-la bem
ali, no meio do tumulto diário da vida.
Depois
de aprender a viver em seu tempo, um homem precisa aprender a viver em si
mesmo. Um homem que não vive o seu talento não pode ser feliz. Não pode ser
feliz fingindo que é feliz, não pode ser feliz fingindo que sabe o que não
sabe, não pode ser feliz fingindo gostar do que desgosta ou ser o que não é.
O
pintor é feliz quando pinta, o matemático é feliz quando calcula. Não se trata
de uma realização superficial, mas de um encontro, o verdadeiro encontro de si
consigo.
Ser
feliz é muito difícil, portanto. Pois é difícil viver o presente, viver o
próprio tempo em que se vive, e ainda mais difícil saber o que se é – e,
depois, ser o que se é.
Por
isso ser feliz é mais simples para as crianças, que estão sempre atentas ao
mundo que é, ao que existe agora e no alcance dos próprios sentidos.
As
crianças são aquilo que são, sem constrangimento. Choram e cutucam os narizes,
gargalham e rolam no chão. Mas, quando a gente chega à idade adulta, esquece
muita coisa. Esquece de sentir as coisas como são. Esquece de ser o que se é –
ou, por vergonha, por covardia, se esconde. O adulto esquece milhões de coisas,
no processo de lembrar das tarefas do dia.
Esquece,
sobretudo, de ser feliz.
Não
esqueça.
Via: Estadão