A
gente mata um pedaço da gente quando deixamos passar o que é mais emergencial e
inadiável em nós. A gente mata um pedaço da gente quando calamos a vontade de
dizer, quando nos envergonhamos da nossa vulnerabilidade e represamos nossas
lágrimas com um erguer bonito de queixo. A gente mata um pedaço da gente quando
cambiamos o desiludir dos sonhos dos outros pela desilusão desportiva dos
nossos.
A
gente mata um pedaço da gente quando dividimos refeições por educação, quando
transamos em troca de falsa autoestima, quando beijamos pra sarar o medo de
ficar sozinho: o nosso e o dos outros. E no afã inútil de não ferir ninguém, e
no desespero de salvar a nós mesmos, a gente vai se matando lentamente.
A
gente mata um pedaço da gente a cada novo arrependimento sem tentativa, a cada
vez que nos dizemos não sem motivo real. A gente mata um pedaço da gente quando
deixamos o medo tomar o guidão e pegar embalo. A gente mata um pedaço da gente
quando nos obrigamos a sair de casa, mas nossa vontade é apenas chorar ouvindo
um disco da Gal.
Um
dia alguém ensinou que é preciso lutar contra a tristeza que mora em nós.
Levianamente não nos disseram que às vezes ela precisa ser vivida e não
contornada como um copo quebrado no chão. Vez ou outra, é preciso atravessá-las
devagar, com um respeito solene. A gente mata um pedaço da gente porque
esquecemos que sentimento nenhum é acidental.
E
assim, a gente vai matando um pedaço da gente até não restar mais pedaço nenhum
pra juntar.