Não
quero saber o que houve. Não me interessam detalhes técnicos, hipóteses,
opiniões. Almir Leite, colega aqui do Estado, foi quem me deu a notícia e me
deu só o essencial, como compete a um bom jornalista. No meio da névoa que se
formou em minha cabeça, me ouvi perguntando: “E o goleiro, o Danilo?”. Resposta: “Sobreviveu por pouco tempo. Morreu logo”. “E o Cleber Santana?” Resposta: “Morto”.
“E o Caio Junior?”. Resposta: “Morto”.
Não
perguntei mais nada. Consegui mencionar os que mais conhecia e admirava. Alguém
depois informou que havia jornalistas entre os mortos, inclusive Mário Sérgio.
Não sei o que dizer, como de hábito. Não há frases de consolo diante do
absurdo. Prefiro conservar a última semana pela qual a Chapecoense passou pela
minha vida. Quarta-feira havia dois jogos na TV: Grêmio x Atlético e
Chapecoense x San Lorenzo. Sabendo que o Palmeiras enfrentaria a enigmática
equipe de Santa Catarina, vi o jogo de Chapecó para avaliar o time. Jogou para
o resultado, fechado dramaticamente e com poucas, mas perigosas, investidas.
Destacou-se o de sempre: Danilo e Cleber Santana, este um antigo centro médio,
um daqueles imperadores do meio-campo, pela postura e pela majestade.
Pensei:
ainda bem que ele vai ser poupado domingo e o Danilo também. Domingo, na
entrada em campo no Allianz Park, não acreditei no que via: na frente vinha
Danilo e, um pouco atrás, reconheci, Cleber Santana. Mas como? Caio Júnior ia colocar
os dois no jogo? E a decisão na Colômbia? Fiquei preocupado antevendo aquelas
bolas que Cleber gira de um lado a outro do campo pegando sempre alguém livre
nas pontas.
Aguentei
o primeiro tempo e só relaxei quando ele não voltou para o segundo. No fim do
jogo eles sumiram e no campo só dava Palmeiras. Por ironia, em seu último jogo,
tinham sido vistos pelo Brasil inteiro. Mesmo voluntariamente desfalcados, sua
dignidade, luta e talento ficaram em todas as imagens.
No
dia seguinte, eles entraram num avião e partiram para algum lugar, ou para o
nada. Não quero saber o que houve. Porque pode se saber o que aconteceu, mas
não por que aconteceu. Perguntas tresloucadas passam pela minha cabeça. O que
essa gente estava fazendo fechada dentro de um avião na noite gelada da
Colômbia em vez de estar em suas camas dormindo, como o resto de nós? Que
trabalho é esse que desloca seres humanos pelos céus e os atiram de São Paulo
para a Colômbia e da Colômbia para Chapecó, tudo no espaço de um ou dois dias?
Que trabalho é esse em que garotos são arremessados para dentro de jatinhos e
quatro horas depois estão em campo, sem se dar conta de que viajaram milhares
de quilômetros?
Mas
não adianta falar. Na essência, o que aconteceu é incompreensível. Para as
famílias, depois que o espetáculo da tragédia diminuir, substituído por outras
tragédias, vai sobrar a dor. Uns vão se consolar com a fé, outros, que não têm
fé alguma, vão continuar perplexos, esmagados diante do absurdo. Na última
semana, a Chapecoense entrou com a velocidade de um meteoro pelas nossas vidas.
Passou, e ficou o silêncio.
Quando ontem adormeci / Na noite
de São João / Havia alegria e rumor / Estrondo de bombas luzes de Bengala /
Vozes, cantigas e risos / Ao pé das fogueiras acesas
No meio da noite despertei / Não
ouvi mais vozes nem risos / Apenas balões / Passavam, errantes
Silenciosamente
Onde estavam os que há pouco /
Dançavam / Cantavam / E riam / Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo /
Estavam todos deitados / Dormindo / Profundamente...”
(Trechos de Profundamente, poema
de Manuel Bandeira)