“Vá se arrumar para ir à Missa”. Eu recebia essa ordem todo
domingo nos tempos de criança no interior da Paraíba. Aos sete anos de idade,
um colega da escola me chamou de uma palavra estranha. E fiquei com dúvidas. “Professora, o que é gay?”.
Desconcertada, minha professora me respondeu que era uma pessoa que fazia a
família sofrer e que iria para o inferno. Naquele dia, voltei para casa em
silêncio. Antes de dormir, no escuro do meu quarto, lágrimas escorriam pelo meu
rosto enquanto eu rezava o Pai Nosso, pedindo a Deus para ir para o Céu.
Na
catequese, aprendi que toda pessoa deveria confessar os pecados perante um
padre, pelo menos uma vez ao ano, para apagar os erros cometidos. Recebi uma
folha com uma lista de atitudes para que pudesse fazer um exame de consciência
antes da confissão. Naquela fila das crianças, tentava compreender a lógica das
perguntas descritas no questionário: Desobedeci aos meus pais ou à professora?
Pratiquei alguma superstição? E assim foram longos anos de confissões com os
padres.
Entretanto,
o medo daquela palavra velada aprisionava a minha identidade. Até que um dia
comecei a frequentar uma comunidade católica e senti a necessidade de desabafar
com o padre novo. Após o relato do segredo, a orientação: “Você deverá seguir a castidade e não poderá se relacionar com nenhuma
pessoa ao longo da vida”. Eu saí daquela sala com a sensação amarga de ter
usado um colírio para dilatar a pupila. Meu mundo se tornou cinza a partir
daquele instante. O nó na garganta me fez sentir que eu veria todos meus amigos
constituindo famílias, menos eu. E assim segui a vida. Passei anos sem me
relacionar afetivamente com nenhuma pessoa, resumindo-me apenas ao curso de Direito,
família, vida em Igreja e amizades que construí.
Apesar
da orientação que castrou minha afetividade, não abandonei a Igreja. Comecei a
frequentar outra paróquia. Sentava-me sempre no último banco e baixava a cabeça
para rezar. Em um domingo de verão dentro do meu outono eterno, escutei o padre
falar sobre Jesus de uma forma diferente.
Acuado,
sem me sentir preparado para conversar sobre as angústias que sentia com algum
amigo, decidi me confessar com o Padre João.
- “Padre, eu sou diferente dos
outros meninos. Lembra aquele dia em que você falou dos leprosos que viviam
dentro de uma caverna na época de Jesus? É assim que me sinto. Dentro de uma
caverna, condenado a uma vida de solidão. Essa situação se acentua quando vou
passar férias no interior. Observo o olhar de julgamento das pessoas e sinto o
meu corpo sem forças, como se alguém tivesse roubado os meus ossos. Sinto
vergonha de ser quem sou”.
–
“Thiago, você conhece a música Geni, do
Chico Buarque? Geni era dona das suas vontades e desejos, e isso incomodava as
pessoas. O refrão demonstra o pensamento do povo da cidade: ‘Joga pedra na
Geni! Joga pedra na Geni! Ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá para
qualquer um. Maldita Geni!’
A música também conta que, um
dia, um Zepelim - sentido figurado do
Cangaceiro - surgiu na cidade
com a intenção
de destruir tudo. Mas quando viu Geni, resolveu que mudaria de ideia, caso ela
dormisse com ele naquela noite. Foi aí que as autoridades pediram,
suplicaram: ‘Vai
com ele! Vai, Geni! Você
pode nos salvar. Você vai nos redimir’. Neste momento, a personagem deixa de
ser a ‘vilã’ para se tornar a salvadora. Após ela ceder à vontade do Cangaceiro
e ele ir embora, todos voltaram a humilhá-la como antes, esquecendo que, por
causa dela, a cidade não foi destruída”.
–
“O que quero dizer com isso, Thiago, é
que você também é Geni. As pessoas sempre vão te julgar - você vivendo a sua
afetividade ou não.
Você
tem todo direito de ter um relacionamento. Infelizmente, as pessoas possuem uma
leitura muito reducionista e insensata da Bíblia. Jesus veio para abraçar
pessoas como você.
Deus é amor e Ele não condiciona
sua vida a um discurso opressor como muitas pessoas propagam. Ele quer a sua
felicidade plena. A minha intuição fala que você está com início de depressão, e
eu vou te ajudar a sair dessa caverna. Eu olho nos seus olhos e sinto o coração
machucado por tantas coisas que você já escutou ao longo da vida. Quero te
ajudar a desatar os nós e a retirar as pedras das mãos de outras pessoas, assim
como Jesus fez com Maria Madalena. Vou acompanhar e orientar você a partir de
agora”.
Aquelas
palavras me atravessaram como um feixe de luz solar. Senti a presença de Deus
olhando para mim e aceitando toda minha singularidade. Acredito que uma das
piores sensações que um ser humano pode carregar ao longo da vida é a de não se
sentir merecedor do olhar de uma pessoa. Era assim que eu me sentia em relação
à Deus. No instante em que escutei aquelas palavras, ele me abraçou e eu
liberei anos de dor em forma de choro entalado na garganta.
A
partir desse dia, eu comecei a enxergar a luz fora da caverna. Mudei-me para
Porto Alegre. Comecei a viver uma reconciliação com a minha identidade
religiosa e afetiva.
A
etapa de aceitação começou a acontecer. Eu passei a sentir coragem de levantar
a cabeça e ser olhado por Deus com olhos de amor. Acredito que, na vida, cada
pessoa precisa encontrar um porto para se sentir seguro e, sobretudo, para
viver de forma transparente e alegre. Porto Alegre celebrou o começo de uma
nova história.
O
processo de acompanhamento e empoderamento com o Padre João foi decisivo para
formação do homem que me tornei. Considero-me um privilegiado e uma exceção,
porque sei que existem muitos meninos e meninas que vivem isolados em cavernas
sentindo a angústia da diferença através da falta de acolhimento das famílias,
igrejas e escolas. Quantas pessoas tiveram a oportunidade de ser orientadas de
uma forma madura e acolhedora como eu fui?
Cinco
anos se passaram desde quando Padre João me acolheu pela primeira vez. Nosso
último encontro aconteceu em uma missa, um dia antes de mais uma mudança de
cidade. Fui pedir a sua bênção. Lá estava eu no último banco da Igreja, ao lado
do meu namorado. No momento da comunhão, ele desceu do altar e foi até o meu
lugar para me dar a Eucaristia. Esse ato simples de significado profundo me fez
sentir o que Padre Fábio de Melo diz: “O
que me fascina em Jesus não é sua capacidade de ressuscitar os mortos, de curar
os cegos, os paralíticos. O que me fascina Nele é sua capacidade e coragem de
dizer que Deus é Pai. Um Pai que tem preferência pelos piores homens e mulheres
deste mundo. Um Pai que ama os que não merecem ser amados, que abraça os que
não merecem ser abraçados e que escolhe os que não merecem ser escolhidos. Um
Pai que quebra as regras ao nos desconsertar com seu amor tão surpreendente”.
No
final daquela missa, meus olhos brilhavam com lágrimas de gratidão por ter
Padre João como meu melhor amigo. O seu abraço me tirou da caverna da solidão.
Logo
após, falei para ele que estava escrevendo meu primeiro livro e que seria
dedicado a ele. “Obrigado por propagar
amor de uma forma tão corajosa. O sacerdócio ganha mais sentido quando tenho
oportunidade de mudar o curso da vida de histórias como a sua”. Essa frase
marcou nosso último abraço. Hoje eu acordei com uma ligação no meio da
madrugada, que me trazia uma dura notícia: Padre João se tornou eterno. Me
levantei da cama, olhei para o Céu e lembrei de um trecho de Ariano Suassuna, “ele encontrou-se com o único mal
irremediável, aquilo que é marca de nosso estranho destino sobre a Terra”.
Tenho
certeza que ele não me deixou. Ele agora vive dentro de mim e é para ele que eu
dedico cada palavra da minha existência comprometida com um despertar de uma
nova consciência. Hoje eu entro novamente naquele quarto escuro do interior do
sertão e abraço aquele menino assustado, para dizer que tudo vai ficar bem.
Hoje eu rezo para que cada pessoa possa assumir o compromisso de abrir mão de
jogar pedras para acolher a história de cada pessoa necessitada de um abraço.