Antes que o choro fique engasgado para sempre na minha garganta.



De repente, as mulheres pararam de chorar. Quase ao mesmo tempo em que os homens se permitiram chorar, cozinhar, dividir as tarefas domésticas e a criação dos filhos, as mulheres passaram a ter vergonha de chorar, principalmente em público. Chorar virou sinônimo de fragilidade, de desequilíbrio emocional, de fracasso.
Eu, que chorava por pouca coisa, contive as lágrimas, reprimi os sentimentos em nome de um jeito forte de ser e de me estabelecer no mundo. Eu, que chorava em filme de cinema, ou por dó de mim mesma, por criança de rua, por injustiça, por amores perdidos e paixões frustradas, pelo sofrimento alheio, pelos humilhados e ofendidos, pela solidão dos domingos e pela violência, de repente, parei de chorar.

Fingi que não via a dor do outro, o medo estampado nos olhos das crianças do Brasil, dos jovens sem futuro. Fingi que as cenas dramáticas da televisão eram corriqueiras. Fingi que a violência era banal, que não existia mais salvação para nada, que as cenas de sangue e morte, de vidros estilhaçados e bombas apoteóticas eram o próprio desenrolar da vida. Haja Prozac, a droga da felicidade para conter tanto pranto.
Fingi não ver a mãe chorando escondido pelo filho dependente de drogas e de álcool, pelo que não encontra sentido em nada, que levanta, dorme, bebe, sem fuso horário, sem direção de pouso ou de voo. Fingi que não sentia medo, que nada mais poderia me emocionar. Nem a flor negra da fumaça dos aviões de guerra. Nem a miséria emocional que se alastrou como uma droga. Nem pela corrupção que está impregnada na pele dos políticos. Nem pelos horrores cometidos em cada esquina.
Fiz de tudo para não chorar, para não me expor ao ridículo, para não revelar a minha indignação, para não colocar lágrimas no lugar de argumentos. Fiz acrobacias com as lágrimas para que elas não escorressem em momentos impróprios, para que elas não desaguassem em horas erradas, para que as pessoas não rissem do meu pranto.
Até que, numa dessas madrugadas, comecei a rir de uma cena cômica de um filme qualquer na televisão. Ri tanto, mas tanto, que chorei de tanto rir. E não parei mais. Chorei pelas mulheres que pararam de chorar, que têm medo das lágrimas como o diabo da cruz. Chorei pelas mulheres que tiveram que reprimir sentimentos, que encobriram a intuição sob o manto da objetividade. Pelas mães que se cansaram de tanto chorar. Pelas mães cujas lágrimas secaram. Chorei como se as lágrimas fossem a água benta do corpo, que pudessem lavar a dor, levar a hipocrisia enxurrada abaixo.
Chorei como uma náufraga pelas mulheres que afogam os filhos na lagoa da insanidade. Chorei pelas mulheres que não têm filhos. Pelas que não conseguem ser mães, mesmo depois de muitos filhos. Chorei pelos filhos que continuam à margem, pelos que não conseguem conversar com os pais, pelos que são livres demais, pelos que continuam presos aos seus próprios fantasmas. Pelos velhos abandonados, encarcerados na prisão dos apartamentos. Chorei pelas crianças que riem de qualquer coisa, do vento, da sombra na parede, do movimento das plantas, dos reflexos da lua e do sol.
Chorei por tudo que é belo: os olhos de Luiza, as pequenas mãos de Rafael, o riso aberto de Gabriel, as perguntas sem fim de Daniel, pela intensidade das estrelas, pelo barulho do mar na concha. Chorei pelo silêncio tão difícil de achar neste mundo, pelo cheiro do amanhecer, pela festa que a Frida faz quando eu chego em casa. Chorei ao ler um poema de Neruda que fala sobre uma cama alta como uma embarcação.
Chorei tanto, que tive de correr para o banheiro, pois as lágrimas desciam como cascata pelo rosto, molhavam a roupa e iam parar numa poça debaixo dos pés. Chorei tanto que as lágrimas pareciam inundar o banheiro, escorrer pelas frestas das portas, sair pelo prédio e encontrar-se com um oceano de lágrimas não choradas, contidas em um poço de vergonha misturada com liberdade. E chorei por minha mãe que está envelhecendo.
Chorei pelas rugas novas que surgem a cada manhã e tomam conta do rosto, das pernas e dos braços. Pelo ranger de ossos, pelos passos em direção à decrepitude. Chorei tanto, que renovei as promessas de rir e brincar com a vida, antes que o choro fique engasgado para sempre na minha garganta.

Via: 50 e Mais