A gente não nasceu pra isso!



Um conto que não encanta, mas que retrata a realidade cruel vivida por muitas mulheres ainda hoje:
Atrasei Dona Marta, mas não foi culpa minha.
Lembra quando falei com a senhora sobre a Zildinha? Pois é, ontem quando cheguei do trabalho ela estava lá em casa me esperando com a cara toda quebrada. O desgraçado do marido sentou a mão nela outra vez. Aliás, a mão e os pés porque chutou um bocado e ainda bateu com a cabeça da pobre na parede. E sei dos detalhes, não porque ela se lembre, mas porque o filho de dez anos assistiu a cena e contou tudo. Esse garoto já viu cada coisa.

Lá fui eu ao pronto-socorro. Foi medicada e quando quiseram saber como ela havia se machucado tanto, nem tive tempo de abrir a boca:
– Foi um carro que me atropelou. Atropelou e fugiu.
Olhei para a cara dela com ódio. Não aprende, não adianta. Volta para casa e quando as feridas estiverem quase cicatrizadas, leva uma nova surra.
Dá para entender uma coisa dessas? Não, nem precisa responder Dona Marta, que eu sei que a senhora concorda comigo. Então ela apanha, fica um tempão com o corpo doído e não coloca o sujeito em cana?
Avisei que não ajudo mais. É meu cunhado, irmão do meu marido, mas queria que fosse preso. Não se faz o que ele fez com ela nem com um bicho, ainda mais numa mulher que deu um filho para ele.
Precisa ver como cuida da família. Não tem hora nem cansaço para ela. Trabalhadeira e cozinha que é um primor.
Desculpe Dona Marta, eu desabafar assim, mas foi por esse motivo que cheguei tarde hoje. Quase não dormi.
Quando saímos do hospital, passava de uma hora da manhã. Insisti para que ficasse comigo, mas não quis. Disse que ele estaria arrependido e não a machucaria. Ela conhece bem as manhas do filho da puta que tem em casa. Desculpe pelo palavrão. Eu é que não conheço mais a Zildinha. Era uma mulher tão bonita e de opinião. Agora está um trapo que dá pena até de olhar.
Estou falando demais, não é? Nem pôde dizer o que quer que eu prepare para o almoço. Meu marido vive repetindo que precisa de uma chave que me desligue quando começo.
O que é isso? Está chorando? Não fique assim. Eu sei que não está acostumada com esses assuntos, mas é que onde moro, acontece cada uma... Só com tempo para contar.
A senhora vive longe desse mundo e é melhor assim, porque a gente não nasceu para assistir essas coisas.
Dona Marta, não chore. Fico sem graça por ter falado tanto. Ainda bem que seu marido foi para o trabalho. Podia até zangar-se comigo por fazer a mulher dele sofrer.
O que é isso, Dona Marta? Só agora estou reparando como seu olho está inchado. E essa mancha roxa no braço? Dona Marta, a senhora...

Via: Folha