Voar:
a eterna inveja e frustração que o homem carrega no peito a cada vez que vê um
pássaro no céu. Aprendemos a fazer um milhão de coisas, mas voar… Voar a vida
não deixou. Talvez por saber que nós, humanos, aprendemos a pertencer demais
aos lugares e às pessoas. E que, neste caso, poder voar nos causaria crises
difíceis de suportar, entre a tentação de ir e a necessidade de ficar.
Muito
bem. Aí o homem foi lá e criou a roda. A Kombi. O patinete. A Harley. O Boeing
737. E a gente descobriu que, mesmo sem asas, poderia voar. Mas a grande
complicação foi quando a gente percebeu que poderia ir sem data para voltar.
E
assim começaram a surgir os corajosos que deixaram suas cidades de fome e
miséria para tentar alimentar a família nas capitais, cheias de oportunidades e
monstros. Os corajosos que deixaram o aconchego do lar para estudar e sonhar
com o futuro incrível e hipotético que os espera. Os corajosos que deixaram
cidades amadas para viver oportunidades que não aparecem duas vezes. Os
corajosos que deixaram, enfim, a vida que tinham nas mãos, para voar para vidas
que decidiram encarar de peito aberto.
A
vida de quem inventa de voar é paradoxal, todo dia. É o peito eternamente
dividido. É chorar porque queria estar lá, sem deixar de querer estar aqui. É
ver o céu e o inferno na partida, o pesadelo e o sonho na permanência. É se
orgulhar da escolha que te ofereceu mil tesouros e se odiar pela mesma escolha
que te subtraiu outras mil pedras preciosas.
E
começamos a viver um roteiro clássico: deitar na cama, pensar no antigo-eterno
lar, nos quilômetros de distância, pensar nas pessoas amadas, no que eles estão
fazendo sem você, nos risos que você não riu, nos perrengues que você não
estava lá para ajudar. É tentar, sem sucesso, conter um chorinho de canto e
suspirar sabendo que é o único responsável pela própria escolha. No dia
seguinte, ao acordar, já está tudo bem, a vida escolhida volta a fazer sentido.
Mas você sabe que outras noites dessa virão.
Mas
será que a gente aprende? A ficar doente sem colo, a sentir o cheiro da comida
com os olhos, a transformar apartamentos vazios na nossa casa, transformar
colegas em amigos, dores em resistência, saudades cortantes em faltas
corriqueiras?
Será
que a gente aprende? A ser filho de longe, a amar via Skype, a ver crianças
crescerem por vídeos, a fingir que a mesa do bar pode ser substituída pelo
grupo do WhatsApp, a ser amigo através de caracteres e não de abraços, a rir
alto com HAHAHAHA, a engolir o choro e tocar em frente?
Será
que a vida será sempre esta sina, em qualquer dos lados em que a gente esteja?
Será que estaremos aqui nos perguntando se deveríamos estar lá e vice-versa?
Será teste, será opção, será coragem ou será carma?
Será
que um dia saberemos, afinal, se estamos no lugar certo? Será que há, enfim,
algum lugar certo para viver essa vida que é um turbilhão de incertezas que a
gente insiste em fingir que acredita controlar?
Eu
sei que não é fácil. E que admiro quem encarou e encara tudo isso, todo dia.
Quem
deixou Vitória da Conquista, São José do Rio Preto, Floripa, Juiz de Fora,
Recife, Sorocaba, Cuiabá ou Paris para construir uma vida em São Paulo. Quem
deixou São Paulo pra ir para o Rio, para Brasília, Dublin, Nova York,
Aix-en-provence, Brisbane, Lisboa. Quem deixou a Bolívia, a Colômbia ou o Haiti
para tentar viver no Brasil. Quem trocou Portugal pela Itália, a Itália pela
França, a França pelos Emirados. Quem deixou o Senegal ou o Marrocos para
tentar ser feliz na França. Quem deixou Angola, Moçambique ou Cabo Verde para
viver em Portugal. Para quem tenta, para quem peita, para quem vai.
O
preço é alto. A gente se questiona, a gente se culpa, a gente se angustia. Mas
o destino, a vida e o peito às vezes pedem que a gente embarque. Alguns não
vão. Mas nós, que fomos, viemos e iremos, não estamos livres do medo e de
tantas fraquezas. Mas estamos para sempre livres do medo de nunca termos
tentado. Keep walking.
Ruth Manus