“Se te perguntarem quem era essa
que às areias e aos gelos quis ensinar a primavera...”: é assim que Cecília Meireles
inicia um de seus poemas. Ensinar primavera às areias e aos gelos é coisa
difícil. Gelos e areias nada sabem sobre primaveras... Pois eu desejaria saber
ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas
como ensiná-la?
Seria
possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? Como, se ele não
ouve? E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? De que pedagogia
irei me valer para comunicar cores e formas a quem não vê? Há coisas que não
podem ser ensinadas. Há coisas que estão além das palavras. Os cientistas, os
filósofos e os professores são aqueles que se dedicam a ensinar as coisas que
podem ser ensinadas. Coisas que são ensinadas são aquelas que podem ser ditas.
Sobre a solidariedade muitas coisas podem ser ditas. Por exemplo: eu acho
possível desenvolver uma psicologia da solidariedade. Acho também possível
desenvolver uma sociologia da solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da
solidariedade... Mas os saberes científicos e filosóficos da solidariedade não
ensinam a solidariedade, da mesma forma como a crítica da música e da pintura
não ensina às pessoas a beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a
beleza, é inefável – está além das palavras.
Palavras
que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são
pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser
engaiolado. Ela não pode ser dita. A solidariedade pertence a uma classe de
pássaros que só existem em voo. Engaiolados, esses pássaros morrem.
O
que pode ser ensinado são as coisas que moram no mundo de fora: astronomia,
física, química, gramática, anatomia, números, letras, palavras.
Mas
há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram dentro do corpo.
Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera…
Sim,
sim! Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se encontram,
adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes – lembre-se da
história da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também
não brotar. Tudo depende... As sementes não brotarão se sobre elas houver uma
pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas...
De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins
há pragas: tiriricas, picões...
Uma
dessas sementes é a “solidariedade”.
A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas,
pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de
fora, poderia ser ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo
interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A
solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente...
Veja
o ipê florido! Nasceu de uma semente. Depois de crescer não será necessária
nenhuma técnica, nenhum estímulo, nenhum truque para que ele floresça. Angelus
Silesius, místico antigo, tem um verso que diz: “A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”. O ipê
floresce porque floresce. Seu florescer é um simples transbordar natural da sua
verdade.
A
solidariedade é como um ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de
mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: “Seja solidário!”. A solidariedade acontece como um simples transbordamento:
as fontes transbordam... Da mesma forma como o poema é um transbordamento da
alma do poeta e a canção, um transbordamento da alma do compositor...
Já
disse que solidariedade é um sentimento. É esse o sentimento que nos torna mais
humanos. É um sentimento estranho, que perturba nossos próprios sentimentos. A
solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro.
Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede
que eu compre um pacotinho de suas balas. Eu e a criança – dois corpos
separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz
imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável esse
sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios sentimentos. Na verdade,
desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu carro, com sentimentos leves e
alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não
são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar.
Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo
sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre.
Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele
mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa,
nem por mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido
pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de
amar o próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é uma forma visível do
amor. Pela magia do sentimento de solidariedade, meu corpo passa a ser morada
de outro. É assim que acontece a bondade.
“O menino me olhou com olhos
suplicantes. E, de repente, eu era um menino que olhava com olhos
suplicantes...”
Rubem
Alves, no livro “As melhores crônicas de Rubem Alves”